segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Veteranos

Tem sempre alguém reclamando das novidades tecnológicas até que elas envelheçam, tornem-se nostálgicas como uma foto em preto e branco, e todos as amem. Imagino ter sido assim com o nascimento do rádio, invenção que guinou o nosso tempo, junto com a máquina a vapor, exemplo de uma energia que vira outra e viabiliza desde a refrigeração até as ondas que invadiram a privacidade excessiva das casas de antes.

O MP3 me trouxe de volta o hábito de ouvir canções no carro. Hábito que andava abandonado, como o de escrever cartas, até que o e-mail despertasse o missivista. Exceto pela correspondência com um único camarada, que durou até que sua máquina de escrever, mecânica, quebrou, não colava selos pra mais ninguém. Parece que consertou a remington, mas não tem me escrito mesmo assim. Melhor nem saber por quê.

Mas, voltando ao MP3, por conta dele gasto os hiatos dos semáforos cantando velhas canções. Aos brados. Todos somos ridículos na cidade grande.

Num dia de vermelho com "Boca da noite", um desses homens que pedem nas ruas se aproximou e aumentei o volume pra chamar sua atenção. "O vento vai pra onde quer / A água corre pro mar / Nuvem alta em mão de vento / É o jeito da água voltar".

- Ah, você é veterano, me disse.

Éramos e sorrimos um pro outro.

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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Livros de garimpar

Tenho grande carinho por livros de garimpar.

Numa tarde em Monteiro Lobato vi um passarinho verde. Exceto pelos periquitos, passarinho verde é coisa rara. Tanto que se diz daquele que ri à toa: "esse aí parece que viu um passarinho verde".

Ainda estava encafifado, "que passarinho verde é esse?", quando vi, voando ao redor, um outro parecido, mas azul.

Procurei no "Aves do Brasil", do Dalgas Frisch, e estava lá, em lindo desenho, o casal. A patroa do saí azul é verde.

As frases em latim eu cato no "Não perca seu latim", do Paulo Rónai, e as árvores procuro no "Árvores brasileiras", do Harri Lorenzi, o consultor do ótimo programa de televisão "Um pé de quê?"

Imagens, como as de aves e árvores, não têm ordem alfabética. Pra achar no livro o que viu na vida tem que folhear.

As expressões latinas têm ordem, mas a gente folheia também.

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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Filme policial

Roteiro de filme policial de 1h40min.

0 a 2 min: corpo jogado no mato, câmara se aproxima de ferimento no peito, repulsivo, muito sangrento, música dramática crescente.

2 a 5 min: câmara sobe, se afasta do corpo, tomada cada vez mais ampla de terreno baldio, corpo sempre na lateral esquerda, até entrar no quadro, no canto superior direito, um homem correndo com arma na mão e, no canto inferior direito, dois detetives e três policiais fardados em frenética perseguição.

5 a 7 min: detetives capturam, com certa violência, homem ainda portando a arma.

7 a 15 min: suspeito confessa na delegacia, perito afirma que o revólver do suspeito é a arma do crime e que há marcas de pólvora na mão do homem.

15 a 16 min : delegado elogia os detetives John e Frank pelo caso resolvido.

16 min até 1 hora e 40 minutos: Frank dorme e ronca, debruçado na mesa de trabalho, e John preenche palavras cruzadas e busca um café de vez em quando.

Créditos e fim.

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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Muito barulho por nada

Tem muita gente preocupada com o livro digital e o futuro da leitura.

Não há por quê.

O livro é um processo que começa com o primeiro comichão do escritor e acaba com o fechamento dos pdf’s da capa e do miolo.

O resto, que diferencia o livro que se pega do digital, é papel, diesel de caminhão e aluguel de livraria de shopping: negócios, portanto.

Nada que seja da conta de quem gosta de literatura.

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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

De novo, a mudança do já escrito

Sou adepto do livro eletrônico (virtual todo livro é), ou pelo menos não sou do exército de resistência.

Dizem que é difícil se acostumar, mas é preciso ter calma!

Quando o livro substituiu o pergaminho, também fiz careta, mas depois me acostumei, mesmo considerando um prejuízo esse negócio de deixar o parágrafo ou a estrofe anterior encoberta pela página virada.

Fico feliz que o livro eletrônico, como o bom pergaminho, possibilite o “rolar”, contínuo, em vez do “virar”, brusco, embora o medo de perder leitores nostálgicos tenha mantido nele, por enquanto, a organização em páginas.

O único aspecto que estranho é o fim da “edição” como marco do pensamento do escritor naquele momento.

Os autores sempre mudaram seus textos em casa, mas publicar era um ponto final, só alterado por outro ponto final da nova edição. Degraus da evolução.

Por exemplo, acabei de mudar o texto abaixo “Regra deseducadora”. Tentei corrigir uns tropeços de redação e acrescentei um final para ampliar o argumento. Ainda que fosse obra importante, que merecesse atenção histórica, quem saberia desse passo?

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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Regra deseducadora

Ainda sobre acordos sociais, é um falso avanço os avisos nos transportes públicos: “Este lugar se destina preferencialmente às gestantes, pessoas carregando crianças, idosos e pessoas com deficiência. Na ausência de pessoas nessas condições, o uso é livre”. Ufa.

Pra que tanto lero-lero? sem falar da odisseia que foi o trajeto da língua pátria até a expressão “pessoa com deficiência”, que passou pelo “deficiente”, que rotula e exclui; o “portador de deficiência”, inexato, pois deficiência não se carrega como um pacote; e sei lá mais que outras tentativas cheias de dedos.

Mas o mais grave é que esses avisos deseducam ao sugerir que cordialidade tem lugar marcado e que, lotados os bancos indicados, esgota-se a gentileza do coletivo.

Como o mundo não está mais pra meias palavras, melhor seria: “É óbvio que todos os lugares se destinam às pessoas que precisam mais. Seja gentil”.

Curto e grosso, até tinta se economizaria.

Agora, perfeito mesmo seria trocar tudo isso por uma placa de “bom dia” e o resto decorrer.

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Entre a cruz e a espada

Algumas normas de convívio eram retas, direcionadoras. O avanço do pensamento mais elaborado parece residir em grudar nelas algumas incertezas. Amolecer os grilhões em mãos macias que indicam não um caminho, mas a importância de andar.

Claro que essa dispersão das regras complica a vida. É muita encruzilhada pra pouco mapa.

Quando “respeitar os mais velhos era uma máxima intocável, devia ser mais fácil ser professor. Estabelecia-se, logo que o pobre começava a aula, um respeito prévio que o protegia de enlouquecer com tanta baderna. Hoje, pro bem e pro mal, “respeitar os mais velhos” não se ensina mais e o pobre mal-pago tem que conquistar, centímetro a centímetro, a atenção de cada mente daqueles malucos que os pais mandam pra escola sem qualquer cerimônia.

Da mesma forma o “primeiro as damas”, que dava certa ordem pras filas, ou o “criança não deve participar de conversa de adultos”, que evitava as complicadas explicações daquilo que o guri na verdade não devia ter ouvido: “titia é sadomasoquista, papai? o que é isso?” ou “por que você disse que o irmão da mamãe é 171?” (claro que toda maledicência do mundo se destina aos cunhados).

Como não usamos mais regras retas e práticas como essas, cada passo tem que ser dado com um olho nos defeitos do chão.

Deve valer a pena, mas dá um trabalho!

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