terça-feira, 26 de novembro de 2013

Fábula cruel

Houve um artista muito famoso. De obras difíceis até de olhar, inspiradas na crueldade humana. Naquele tempo a arte já incluía o completamente feio.

O famosíssimo artista era fumante compulsivo e tinha um único filho. Nos intervalos da sua arte, tinha o hábito de apagar os cigarros nos pés do menino. O cinzeiro.

O fumante morreu e sua arte permaneceu como das mais importantes da sua época. Tornou-se “pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública” (*).

O cinzeiro não teve vida fácil. Os traumas o acompanharam por décadas. Nunca os esqueceu, mas, à custa de muita análise e muito divórcio, botou sua dor em um baú no sótão. Por conta das cicatrizes, não ia à praia e só amava no escuro, mas ia vivendo.

Até que um dia, publicaram sua antiga condição de cinzeiro do pai. Foi uma “divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica” (**). Em um programa de televisão.

À alegação de que o “apagar de cigarros em pezinhos infantis” não tinha finalidade biográfica, respondeu o advogado: “mas é parte indissociável da arte do fumante”.

Alegou-se também que não se tratava de biografia, mas de programa de televisão.  “Se a lei não restringe, não cabe ao intérprete restringir”, rebateu o estudioso e combativo causídico.

Tudo voltou. Tiraram o baú do sótão e não mais bastavam os sapatos e o escuro. De novo o cinzeiro não podia olhar ninguém nos olhos.

Repleto de bitucas, ganhou uma grande indenização por danos morais e pôs formicida Tatu na taça do vinho mais caro que encontrou.

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(*) e (**) – critérios da proposta de alteração do artigo (clique)  de lei de proteção à divulgação de intimidades

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