Houve um artista muito famoso. De obras difíceis até de
olhar, inspiradas na crueldade humana. Naquele tempo a arte já incluía o completamente
feio.
O famosíssimo artista era fumante compulsivo e tinha um
único filho. Nos intervalos da sua arte, tinha o hábito de apagar os cigarros
nos pés do menino. O cinzeiro.
O fumante morreu e sua arte permaneceu como das mais
importantes da sua época. Tornou-se “pessoa
cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública” (*).
O cinzeiro não teve vida fácil. Os traumas o acompanharam
por décadas. Nunca os esqueceu, mas, à custa de muita análise e muito divórcio,
botou sua dor em um baú no sótão. Por conta das cicatrizes, não ia à praia e só
amava no escuro, mas ia vivendo.
Até que um dia, publicaram sua antiga condição de cinzeiro
do pai. Foi uma “divulgação de imagens,
escritos e informações com finalidade biográfica” (**). Em um programa
de televisão.
À alegação de que o “apagar de cigarros em pezinhos infantis”
não tinha finalidade biográfica, respondeu o advogado: “mas é parte
indissociável da arte do fumante”.
Alegou-se também que não se tratava de biografia, mas de
programa de televisão. “Se a lei não
restringe, não cabe ao intérprete restringir”, rebateu o estudioso e combativo
causídico.
Tudo voltou. Tiraram o baú do sótão e não mais bastavam os
sapatos e o escuro. De novo o cinzeiro não podia olhar ninguém nos olhos.
Repleto de bitucas, ganhou uma grande indenização por danos
morais e pôs formicida Tatu na taça do vinho mais caro que encontrou.
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(*) e (**) – critérios da proposta de alteração do artigo (clique) de lei de proteção à divulgação de intimidades
.
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